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I. A Morte dá uma chance
Eu me ergui com um solavanco, a cabeça doendo. Olhei ao redor, tentando entender a paisagem onde estava, mas não foi a melhor das ideias. No chão de pedras, tomado por raízes de árvores mortas, havia corpos.
Meu estômago se contorceu.
Tentei buscar na cabeça qualquer lembrança de como eu tinha ido parar ali, mas não encontrei. A última coisa de que me lembrava era...
Fogo.
Não um fogo comum, mas um fogo furioso, com chamas grandes demais. Tomando tudo. Quebrando tudo. E dor. Uma dor ardida, muito próxima, que corroía e... paralisava. Todo o meu corpo tremeu ao se lembrar de labaredas intensas brincando com uma pele branca.
Tentei apertar minhas mãos uma na outra para que parassem de tremer, mas meu pânico só aumentou quando reparei nas marcas enormes, já cicatrizadas, que contornavam meus braços. Queimaduras. Levei as mãos à cabeça e toquei os fios ruivos do meu cabelo, porém, quando as desci para o rosto, senti o que o fogo tinha causado no seu lado direito. Minha pele se revirava e dobrava em si mesma. O pânico subiu pela minha garganta e odiei cada uma daquelas cicatrizes imediatamente, porque eram disformes. E nojentas. A pele havia se deslocado de uma maneira que não deveria, até se tornar algo que não mereceria ser pintado, algo que me fazia desejar sair do meu próprio corpo.
Lágrimas se formaram nos meus olhos e desceram feito cascatas. Em momentos como esse, eu me agarraria ao Vincent e deixaria que seu pelo macio me acalmasse. Como será que ele estava? Ele sempre foi um gato inteligente, mas a lembrança do fogo, e da dor, permanecia vívida, embora não houvesse nada depois dela. Todo o resto era um vazio. E não saber que lugar era aquele não ajudava em nada, assim como os corpos, ainda no chão, que pareciam personagens de uma cena macabra. Será que estavammortos?
Mortos... como eu?
Balancei a cabeça. Não, eu não podia estar...
— Ei, você tá legal?
Virei-me para trás, os olhos arregalados. Em meio à penumbra, uma garota com expressão preocupada me encarava com atenção. Uma onda de alívio cresceu dentro de mim. Eu não havia morrido, afinal. Ou não poderia ser vista por outra pessoa. Era uma regra básica, não?
Abri a boca para responder, mas sua pele negra retinta perfeita — ou, ao menos, sem nenhuma cicatriz monstruosa — fez com que eu ficasse ainda mais consciente do meu próprio estado. Abracei a mim mesma em uma tentativa falha de me cobrir até desaparecer.
Com um suspiro, ela se aproximou e retirou a jaqueta de couro que estava vestindo, ficando apenas com uma blusa cor-de-rosa.
— Toma — ofereceu, estendendo a peça para mim.
Cogitei dispensar a oferta, mas não conseguiria ficar encarando aquilo. Porque as cicatrizes não deveriam estar ali, e encará-las produzia agulhadas de incômodo. Aceitei a jaqueta com um olhar agradecido e a vesti com rapidez; a suavidade do couro me acolheu.
— Me diz uma coisa, você sabe onde a gente tá? — perguntou ela enquanto enrolava um dos seus cachos com movimentos rápidos e repetitivos.
— Não faço ideia — respondi, secando as lágrimas das bochechas.
A desconhecida olhou para cima, a expressão pensativa, como se fosse encontrar a resposta flutuando pelo ar.
— Será que fomos raptadas?
— Raptadas?
Franzi o cenho, pois não havia cogitado a possibilidade, mas também não a levei a sério nem por um segundo. Afinal, estávamos livres, sem algemas nas mãos ou fitas na boca, o que era ainda mais assustador, porque, diferente de em um sequestro, não tínhamos como saber o que esperar.
— Só pode ser, ué — afirmou ela. — Meu nome é Kaira, aliás.
— Celina — respondi. — Mas prefiro só “Lina”.
Uma após a outra, as pessoas começaram a despertar e, aos poucos, o chão deixou de parecer um mar de corpos. Assim como eu, todos ali agiam como se estivessem perdidos, buscando algum sentido em toda aquela situação. No entanto, ninguém parecia ter sucesso. Não demorou até uma discussão ter início e o falatório ficar alto demais. Só se ouvia perguntas como:
— Que lugar é esse?
— Quem trouxe a gente pra cá?
Olhei para longe, buscando o horizonte como sempre fazia para me distrair e acalmar os batimentos acelerados do meu coração, mas uma sensação terrível me invadiu, porque eu não reconhecia nada naquele lugar. Não havia mais o céu límpido que costumava me tranquilizar, nem o verde profundo das árvores ou o barulho irritante das avenidas agitadas.
Tudo ali era sombrio. O céu era escuro como um vasto manto negro, sem estrelas cintilantes e sem a iluminação da cidade. E, embora houvesse uma lua, ela não parecia nem um pouco real, porque mal brilhava. Era opaca feito um fantasma boiando no céu e seu propósito parecia ser iluminar apenas o necessário. Existiam árvores, mas os galhos estavam secos e retorcidos, tão frágeis quanto o meu estado de espírito. Já as poucas construções que eu conseguia ver eram todas decrépitas, feitas de materiais antigos e cobertas por vinhas mortas.
Arregalei os olhos, chegando à última conclusão: não havia cor. Nenhuma cor alegre, pelo menos. Nem vida. O céu ali era tão infinito como o das minhas memórias, mas era só isso o que tinham em comum. Não havia nada em sua imensidão — pássaros, estrelas, nada. Era como se soubesse que não havia o que fazer para trazer alegria ao cenário abaixo, tão cinzento que parecia uma mistura de preto e branco em uma tela sem sentimentos.
— O-o que é aquilo? — perguntou Kaira, chamando a minha atenção.
O choque me paralisou.
O silêncio se instalou de forma tão pesada que pude ouvir a respiração de Kaira ao meu lado.
Tudo porque sombras densas e raivosas se expandiam no ar como um vento descontrolado, até se transformarem em... um homem. Quer dizer, não sabia se “homem” era a palavra certa quando não havia nada de humano nele. Os olhos se pareciam com os nossos, mas as pupilas eram uma mistura infinita de tons de preto, que evocavam portais obscuros para segredos e conhecimentos sedutores. Tudo isso contrastava com os cabelos, brancos e reluzentes, que terminavam nos ombros e eram quase da mesma cor da sua pele. Tão branca quanto a de uma pessoa albina. Os traços dele eram afiados, letais, pois não havia suavidade alguma na boca fina e reta ou no nariz esculpido de forma severa. O corpo, por outro lado, era estreito, e um manto o cobria. Não um manto qualquer, mas um cujo tecido era feito de sombras que se moviam como chamas, indo de um lado a outro, para cima e para baixo.
Só que não foi nada disso que enviou um calafrio pelo meu corpo ou fez minhas pernas vacilarem. Foi o objeto que ele segurava. Uma grande e imponente foice, que parecia capaz de arrancar a vida de qualquer um que ousasse encará-la por muito tempo. Não que isso fosse um problema para mim, porque, naquele instante, não tive mais dúvidas.
Eu estava morta.
Porque aquele ser era a própria Morte.
Com seus dedos longos e finos, ele apertava o cabo escuro da foice com a naturalidade com que eu segurava um pincel. Como se a curvatura da lâmina não reluzisse uma promessa de perigo. Ou, talvez, o perigo estivesse nele, no fim das contas. Naqueles olhos pretos que, apesar de amedrontadores, prometiam uma escuridão prazerosa. Ou nas sombras flamejantes, que, mesmo emanando ameaça, eram quase... convidativas.
Ele era a personificação de um predador, empregando artifícios para nos distrair e, no momento certo, daria o bote. Ou já até tinha dado. Afinal, ao que tudo indicava, nós já havíamos sido pegos por suas garras, caso contrário não estaríamos ali — e era a mão delgada dele que segurava todo aquele poder. Uma mão que...
Pisquei. Flashes de memória, mais uma vez, invadiram a minha mente em uma confusão de cores. O vermelho-vivo do fogo. Gritos, não sei se meus ou de outra pessoa. O som dos bombeiros. Dor. E uma mão estendida.
A mão... dele?
Foquei a imagem que se formava em minha consciência, tentando entender o que significava, e mais cenas passaram por trás dos meus olhos. Cenas cortadas, porém, marcadas por cabelos brancos e escuridão.
Eu já o vi antes.
Isso explicava a sensação de déjà vu que experimentava naquele instante. Só não conseguia desvendar exatamente onde ou quando isso havia ocorrido. Eu tinha mesmo vislumbrado sua figura em meio ao fogo? Não tinha certeza. De todo modo, não podia deixar de me perguntar se ele estivera comigo durante a minha morte ou se eu estava me pregando peças, tirando conclusões precipitadas.
Em um silêncio angustiante, a Morte percorreu o ambiente com passos leves, um ar de divertimento nos olhos. Apertei a jaqueta ao redor do corpo, porque o ar ficou gelado de repente e todos os meus pelos se eriçaram. Depois, fiz menção de tirá-la e devolvê-la quando percebi que Kaira começou a tremer ao meu lado, mas ela negou com a cabeça.
Eu ia insistir, mas perdi a capacidade de raciocínio assim que a entidade ergueu a mão e galhos retorcidos se embrenharam em um frenesi até formarem uma escada que se levantou do chão. A Morte subiu degrau por degrau, e ruídos de madeira velha e seca ecoaram por todo o lugar. Ao chegar ao topo da estranha escada, um grande trono de madeira adornado com espinhos longos e afiados surgiu do absoluto nada, tão alto e imponente que sua sombra se estendeu pelo chão e cobriu nossos rostos chocados.
— É uma grande alegria receber todos vocês em minha casa — declarou a criatura, a voz grave e profunda exalando autoridade.
— Sejam bem-vindos ao Abismo.
— Que merda é essa?! — esbravejou um homem. — Eu não sei o que você é, mas…
A criatura fez um movimento com o dedo indicador e, de repente, o homem começou a bater em si mesmo e a se desesperar, fazendo movimentos desengonçados e murmurando coisas sem sentido. Franzi o cenho, sem entender, até ele parar diante de uma mulher e a sacudir, clamando por ajuda. Foi então que vi: sua boca simplesmente desaparecera.
Segurei a jaqueta com mais força, até os nós dos meus dedos ficarem pálidos, a cabeça tumultuosa e o coração prestes a saltar do peito.
— Como estava dizendo, uma grande alegria — prosseguiu a criatura com um sorriso felino, reclinando-se no trono até quase se deitar. — Vocês vão perceber que eu não aprecio interrupções e nunca repito o que digo. Portanto, sugiro que ouçam com atenção, pois o que vou dizer determinará seus destinos.
Eu me obriguei a respirar fundo até acalmar meus batimentos e a respiração, ignorando minha cabeça, que parecia prestes a entrar em colapso. Fiz o possível para focar apenas a voz irônica do ser no trono e não me entregar ao desespero.
— Vamos acabar logo com qualquer esperança boba que vocês tenham. — Ele suspirou, impaciente. — Sim, vocês estão mortos. Não, vocês não estão no Céu. Mas acho que isso já deu para notar, certo?
Ele deu uma risadinha da própria piada enquanto olhava todo o cenário devastado e morto ao redor, mas o som não foi retribuído. Alguém começou a chorar baixinho perto de mim, e precisei respirar fundo mais uma vez para manter a postura firme.
— O que foi? Acharam que seu lugar no Céu estava garantido? — Ele ergueu o dedo indicador, movendo-o de um lado a outro em um gesto enfático de negação. — Nada disso.
A tensão no ar era palpável. Como se todos estivessem paralisados, exceto os que soluçavam. Desviei o rosto e observei os arredores apenas para me deparar com lábios trêmulos, olhos lacrimejantes e cabeças balançando em negação. No entanto, a imensa maioria não conseguia deixar de encarar a Morte. Mesmo com medo, seus olhos e corpos se voltavam para ele, absortos por aquela presença sobrenatural.
— Todos vocês morreram sob a mesma circunstância, mas se acalmem — informou a Morte, entediado, como se já tivesse dado aquela mesma explicação milhões de vezes. — O destino de vocês ainda não foi decidido. Vocês ganharam uma última chance. Eu.
Bocas se abriram em total espanto, e meu corpo ameaçou se descontrolar de novo, mas firmei os pés no chão. Imaginei cores vívidas, felizes, como o azul do antigo céu, e só parei quando senti que não começaria a chorar ou a espernear como faziam várias pessoas ao meu redor.
A Morte bateu a foice na escada, e tudo abaixo de mim sacudiu. Algumas pedras se esfarelaram sob meus pés enquanto um terremoto se iniciava; o barulho de rochas quebrando ressoou. Kaira e eu precisamos nos segurar uma na outra para não cairmos. A alguns metros, cada retângulo de pedra se moveu até abrir um buraco, de onde se elevou um grande bloco rochoso que, em seu topo, carregava algo majestoso.
Não havia outra palavra capaz de descrever o espelho gigante com ornamentos delicados e detalhados em ouro, brilhante o bastante para me cegar momentaneamente, tão lindo que parecia obra de um artesão celestial. O vidro era liso e de um azul intenso, como um oceano atrativo que te convidava a dar um mergulho. Respirei de alívio por ver uma cor, por senti-la me acalmar. Desejei ter meus pincéis para pintar a imagem esplendorosa do objeto à nossa frente e me aproximei do bloco para olhar mais de perto, mas sombras vivas surgiram do nada e se alastraram como fogo ao redor do espelho.
Eu me afastei e voltei para perto de Kaira, perturbada. Tive a impressão de que a figura enigmática no trono havia pousado seu olhar em mim por alguns segundos.
— Como logo vão descobrir, o espelho não reflete a imagem insignificante de vocês — informou ele, apoiando um dos braços no trono de forma preguiçosa e descansando o rosto esculpido na mão. — Ele mostra a verdade e conduz à verdade. Não engana e não pode ser enganado.
A Morte fez um movimento gracioso com a outra mão e um cálice se materializou em seus dedos longos. Fixei meu olhar nele à medida que o líquido deslizava por sua garganta pálida, pois tudo nele era desconhecido — e eu sempre fui curiosa até demais. Era quase admirável como ele fazia um movimento tão simples quanto tomar uma bebida parecer íntimo. Eu não conseguia parar de encará-lo, de buscar por detalhes ocultos, controlada por um magnetismo que era uma mistura de horror e fascínio.
Porque tudo nele era um mistério, e mistérios, às vezes, imploravam para serem desvendados.
Seu manto de sombras se movia com uma fluidez dolorosamente calma, revelando braços pálidos contornados por veias escuras, praticamente pretas. Tudo nele emanava morte e, embora não tivesse uma ruga sequer, havia uma brutalidade refinada naquele rosto anguloso que não fazia parte da juventude. Algo assim só podia ser adquirido com o passar de muitos anos.
Por debaixo do manto, ele usava um colete refinado de um material que parecia veludo, tão preto quanto suas veias, e com alguns bordados em dourado que davam um toque luxuoso. Sem dúvida, não era o tipo de roupa que eu esperava ver na Morte.
— O que você acha que ele tá bebendo? — sussurrou Kaira no meu ouvido.
Estava prestes a dizer que não fazia ideia quando uma gota de um líquido vermelho, que devia ser vinho, desceu dos seus lábios finos até o queixo delineado. Ele afastou a taça da boca de modo preguiçoso e limpou a gota com o polegar. Continuei observando todos os seus movimentos sem piscar ou me mover.
Como alguém que percebia que estava sendo analisado, a criatura fixou sua atenção em mim com aquelas pupilas escuras. Ele balançou o líquido que havia na taça, sem deixar de fazer a própria análise. Tentei sustentar seu olhar, imaginando se ele já havia visto cicatrizes piores do que as minhas, se me achava tão horrível quanto eu mesma me achava, mas falhei. O sangue que subiu para o meu rosto obrigou-me a desviar os olhos para outra direção.
Esperei um tempo antes de voltar a olhá-lo, para ter certeza de que ele não estaria me encarando de volta.
— Se desejam partir do meu lar, precisarão encarar o que tem dentro do espelho e, depois, passar pelo portal que se formará na superfície dele — explicou a Morte, a taça ainda girando na mão. — Eu, particularmente, acho aqui muito mais divertido. Uma pena a maioria de vocês preferir o Paraíso.
Ele aguardou que todos processassem aquelas palavras ou só aproveitou a pausa para dar mais um longo gole no conteúdo do cálice. Eu, porém, já não conseguia me concentrar em mais nada e minha mente girava de forma enlouquecida.
O Paraíso... existe mesmo!
Eu nem conseguia mensurar o que aquilo significava, mas as imagens dos folhetos que os religiosos distribuíam nas ruas, na minha vida anterior, preencheram minha cabeça. O céu era sempre lindo, com uma mistura de cores etéreas. As árvores, as flores, os riachos cristalinos, as famílias perfeitas. Tudo era pintado de forma harmoniosa e gerenciado por um Deus afável e bondoso, sem dúvidas bem diferente da criatura sentada no trono espinhento, com suas falas carregadas de deboche e olhar malicioso.
Toquei meu rosto, sentindo a pele com a textura desagradável. Não me lembrava de ver pessoas com cicatrizes nos folhetos. Será que minhas marcas sumiriam quando eu chegasse lá? As cores brilhariam de forma diferente? Eu encontraria tintas para pintura?
— Alguma pergunta? — indagou a Morte, com o suspiro resignado de alguém que devia cumprir uma obrigação.
— C-com licença. — Uma mão se ergueu no ar, receosa. — E-eu tenho u-uma dúvida.
— Diga.
— Então é só ir até o espelho e seguir em frente?
A figura da Morte encarou o homem por um instante, então fez a única coisa que eu não esperava: desatou a rir. Uma risada estranhamente sedutora, que cruzou todo o espaço e só cessou quando um pouco do líquido foi derramado do cálice.
— Perdão, perdão — disse ele, mas ainda havia o resquício de uma risadinha no canto dos seus lábios. — Vocês acharam mesmo que seria tão fácil assim? Que isso aqui é só uma sala de espera? Bem, lamento decepcionar. O espelho não é só um portal; ele vê a sua alma. Você pode passar por ele, mas antes ele deve olhar para você. Infelizmente, o espelho só aceita algumas pessoas. Os meus campeões.
Kaira e eu trocamos um olhar angustiado enquanto alguns sussurravam súplicas e reclamações.
— O que foi? — perguntou a Morte com bom humor. — O Paraíso não pode ficar abarrotado de humanos idiotas. São as regras da casa.
— O que você quer dizer com... campeões? — O rapaz tornou a perguntar.
— Vocês nunca ouviram falar de como a Morte adora jogos? — questionou ele com um revirar de olhos. A palavra que usou para se referir a si próprio fez alguns vacilarem. — Bom, agora vocês sabem. Vamos jogar um jogo. As regras são simples: para ser digno do espelho, é preciso vencer três desafios.
Mordi a língua e o gosto ferroso de sangue se espalhou.
— Os três desafios foram pensados para revelar o que seu inconsciente esconde e explorar o que há de mais profundo em suas almas: desejos, temores, esperanças e todas as outras bobagens que adquiriram no mundo terreno.
Todas as bobagens que adquiriram no mundo terreno? Uma lembrança surgiu em minha mente sem que eu tivesse tempo de expulsá-la. Era a imagem de uma mulher de ossos muito proeminentes e palavras cortantes. Minha mãe. Os olhos verdes eram parecidos com os meus, uma versão apagada deles, já que ela era apagada. Como se tivessem passado uma borracha várias vezes por todo o seu corpo.
De repente, me vi de volta à nossa velha casa com tijolos rachados e tinta descascando. Meu salário mal pagava as contas, mas era o único emprego próximo o suficiente para me permitir ficar de olho nela. De pé na frente do fogão, nós discutíamos por ela continuar levando homens para o seu quarto. Por continuar gastando o dinheiro que eles lhe davam com uma substância que destruía seu corpo.
— Eu odeio você! O dinheiro é meu, sua imprestável! Eu gasto como eu quiser!
Pressionei os dentes com força, rejeitando a memória. Tentar cuidar dela e lutar para que nós duas tivéssemos o que comer tinha sido como insistir em segurar uma corda frágil e que me cortava os dedos, sempre prestes a arrebentar. E eu estava tão, tão, cansada de carregar aquele peso. Ainda assim, não consegui soltá-lo em vida. Fazer isso seria como deixá-la morrer e… Ela ainda era minha mãe, não? A pessoa que tinha me presenteado com os primeiros pincéis, que dera beijinhos para qualquer machucado sarar e que havia sofrido comigo pela morte do meu pai.
Nada disso importa agora, concluí. Mas o que eu havia adquirido no mundo terreno, além de arrependimentos? Mesmo agora, sentia falta apenas das coisas que não tive a chance de ter. Não ter podido arrumar um emprego longe da sarjeta onde vivíamos, pois minha mãe precisava de mim. Não ter conseguido arcar com um curso de pintura, pois mal tinha dinheiro. Também não ter ido para a universidade, pelos mesmos motivos. No fim, eu tinha vivido de forma cruelmente estática.
Não cometeria o mesmo erro na morte.
Então, se depois de atravessar o portal eu pudesse ir para um lugar mais bonito, sem obrigações desgastantes e com paisagens deslumbrantes para pintar…
Seria o suficiente, certo?
Nunca tinha me permitido seguir um caminho traçado por minha própria vontade. Aquele era o momento certo para isso. Eu venceria os jogos, entraria no espelho e seguiria para um lugar melhor, aonde as pessoas desejavam ir com todas as forças.
A Morte tornou a molhar a garganta com a bebida em um movimento demorado, ainda examinando nossas reações — devagar o bastante para a ansiedade corroer meu estômago diante da perspectiva de jogar algo criado por uma entidade tão emblemática e ambígua. Para alguns, a Morte podia significar conforto e misericórdia, enquanto para outros, representava crueldade e despedidas nunca feitas.
— Respira fundo, Lina — murmurou Kaira, calma, embora seus músculos estivessem tensos.
Eu ofegava, como se tivesse acabado de correr uma maratona, e minhas unhas haviam afundado um pouco na pele. Meu controle estava por um fio, e eu sentia que a qualquer momento poderia ceder, assim como alguns dos outros ao meu redor. Os soluços escapando de suas bocas tornavam difícil ouvir cada palavra da Morte com exatidão, então eu precisava me manter atenta. Não podia desmoronar. Ainda não.
Levei ar aos meus pulmões e soltei lentamente, seguindo o conselho da garota.
O ser sombrio, que já havia afastado o cálice dos lábios, levou uma das mãos ao queixo e nos dirigiu um olhar malicioso.
— Se ganhar, você segue seu caminho — disse ele. — Se perder, seu caminho será me servir por toda a eternidade.
Estremeci.
— Nós estamos ferradas — murmurei.
— Muito ferradas — concordou Kaira.
A criatura realizou um movimento fluido com a mão e o cálice desapareceu, assim como o espelho majestoso, deixando o grande bloco de pedras, que antes o sustentava, com o topo vazio. A Morte se aprumou no trono; pela primeira vez, sua postura era totalmente séria. Sem olhares ardilosos ou sorrisos debochados, apenas uma expressão implacável. Firme.
— Os jogos terão início amanhã. Esta noite, vocês podem explorar avizinhança, mas sem pressa. Esse vai ser o lar da maioria de vocês, de qualquer maneira.
Suas palavras me atingiram como um mergulho em água quente demais, a aflição alcançando todos os meus membros. A diferença era que o que estava em jogo não era apenas algumas bolhas, mas o destino da minha alma. Minhas pernas bambearam e, assim que o corpo da Morte foi envolvido por chamas escuras e desapareceu do trono, eu desmoronei.
A continuação a partir do segundo capítulo está disponível no livro. Boa leitura!
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